sexta-feira, 26 de junho de 2009

Vinho sem idade

Estava entre a doce e lânguida inércia do sono que teimava em levar a sua avante e o fio fino da consciência que puxava o pensamento para o seu lado.
Estava á beira da morte e sabia-o.
Estava feliz. Genuinamente feliz como nunca estivera em todas as minhas vidas especialmente porque a escolha era minha.
Pensar no sono eterno sempre foi um consolo.
No entanto até que a morte viesse...
Olhava fixamente para a esquina do quarto.
Lá estava ele em cima de uma mesa pequenina.
Um frasco vulgar de vidro com o sangue da "salvação", o teu sangue. Agonizo lentamente entre muitos e últimos fôlegos.
Escolhi partir.
O teu antídoto é e será sempre um presente envenenado.
E eu sei e sempre soube disso.
Sei também que se decidir viver estarei à tua mercê qual boneca num espectáculo horrendo em que a beleza extrema se confunde com um prazer insustentavél, não queremos olhar mas espreitamos sempre por de entre os dedos.
As luzes de alerta estão lá mas são sempre ignoradas.
Não tive tempo...(o que é isso para quem nunca teve outra coisa ?)..... de saber quem tu eras.
Renasci, não de um acto de amor, nem paixão nem piedade sequer.
Fui criada pela tua fome sem respeito nem permissão.
Andei´à deriva, escrava dos meus sentidos e da minha raiva todas estas eras.
Amei-te, pura e simplesmente com todos os exageros que a palavra implica...e mais alguns.
Ias e vinhas como sereia invertida que mantinha cativa a sua vitima.
O teu sangue e o teu sorriso esquivo eram as únicas migalhas Às quais tinha direito.
Foram séculos assim.
O meu corpo intacto pelo tempo não pensava nem pensa em partir.
Não concebe a sua autodestruição, como se de um conceito filosófico absurdo se tratasse.
A mente está esgotada, as memórias de tantos mundos vividos são insuportavéis.
Decidi então sem mais nem menos pedir gentilmente ao barqueiro que me colocasse as duas moedas nos meus olhos como pagamento adiantado pelo seu nobre serviço e que me levasse sem demora até a outra margem dum mar de névoa, do esquecimento.
Tu sentiste a dor qual pai sem raiz com os filhos que coloca no mundo e pela primeira vez surgiste do nada com "O remédio para todos os males"...disseste....
Tu próprio, o teu vinho sem idade.
Pediste-me sem súplica, sim porque és um vinho orgulhoso, que ficasse, que eu era parte de ti sempre.
Rasgaste a tua carne, não para a minha boca seca e marmórea mas para um simples e vulgar frasco de vidro.Uma humilhação quase póstuma, "Arrasta-te e vive!" sussurraste.
Limitei-me a sorrir.
Arrebatada por te ter vencido embora tu ainda não o soubesses.
Qual arrepio vieste e desvaneceste-te.
Olho para o frasco, o sangue é espesso e escuro, as janelas estão abertas, vejo os primeiros raios de Sol pela primeira vez em muitas mortes e com os olhos bem abertos de espanto qual criança maravilhada sou embalada pelo vento da minha última manhã.


Autoria: Mandrágora

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