sexta-feira, 26 de junho de 2009

Era noite na estação

Era noite na estação.
O calor do estio dura demasiado, para além do sol que lhe deu origem, o calor trespassa a noite, em tons de Vermelho e Negro.
Aguarda pelo próximo comboio. Nada se ouve, nem um som, nem uma ânsia, nem uma gota. Está sedento.O seu instinto alerta-o, forte, pressente.... tenta descodificar... Ouvem-se vozes, difusas...ao fundo...será imaginação?
Saiu da cidade há muitos anos e que se instalou, pacatamente, discretamente, vivendo a vida a dobrar pela metade do tempo que tem. Nada o fazia afastar-se do ambiente impessoal da cidade, mais seguro, por um lado, mais luminoso, por outro, o Vermelho nem sempre é Vermelho, pode ser Desbotado, o Negro nunca é Negro. Ao inicio estranharam-no depois não, estranham a sua reserva mas atribuem-na a falta de mulher. Pudera saberem o que acontecera antes, à mulher e a todos... Agora sim, tira o que precisa, refresca-se, não mais do que precisa, lentamente.
Ouvem-se vozes difusas, ao fundo, será imaginação? Nunca as tinha ouvido, desde que aqui chegou. Nunca as tinha ouvido, na verdade.
Eis que um som o distrai, um comboio que anuncia a sua chegada, em tons de Vermelho e Negro, o primeiro do calor, vital, o segundo da noite, noite, o dia do seu dia. A luz ténue perde progressivamente essa característica enquanto o som aumento, ao fundo, mais perto, a luz incandescente e o som, abriga-se...
Ouvem-se vozes, ao fundo, difusas, constantes... O seu instinto alerta-o, forte, pressente uma presença não presente.... tenta descodificar...
O comboio chega e para com um gemido de cansaço, saem pessoas, ligeiras, umas mais ligeiras que outras, ligeiras de menos. Ele levanta-se, caminha, na direcção das pessoas, ligeiras, umas mais ligeiras que outras, ele mais ligeiro, sacia-se, refresca-se, em tons Vermelho e Negro à luz metálica do luar.
O comboio já partiu.
Ele também, na direcção da aldeia, a pouca distância dali. Vai refrescado, ligeiro.
Ouvem-se vozes, ao fundo, constantes....uma presença, não presente...
As vizinhas olham-no como sempre o olharam, pensa ele enquanto passa por um pomar, de laranjas, de nome não de cor, que as laranjas têm tons de Vermelho e Negro, desde há muito, desde o primeiro dia de calor, vital, de noite, o dia do seu dia.
As laranjas brilham com um brilho metálico, à luz da lua, as laranjas e as bicicletas, algumas passam a esta hora da noite, ligeiras, umas mais ligeiras que outras, ligeiras de menos. Ele segue o seu caminho, ligeiro, mais ligeiro que as bicicletas ligeiras de menos, sacia-se, refresca-se, em tons Vermelho e Negro à luz metálica do laranjal.
Chega à aldeia, caminho longo apesar da pouca distância dali, já não tão refrescado, ligeiro.
Ouvem-se vozes, perto... será imaginação? O seu instinto alerta-o, forte...
Sobe as escadas até à água-furtada que alugou há muito, porto de abrigo, ninho escondido, em tons de Vermelho e Negro acetinado, metálico, à luz do luar. Tenta adormecer, porque o dia do seu dia faz-se noite no dia seguinte, em tons dourados e incandescentes, ao princípio ténues, depois mortais.
Está inquieto, ansioso, uma presença, não presente...o seu instinto alerta-o, forte...
Ouvem-se vozes, altas, perto...
em tons de Vermelho e Negro, nem uma gota. Está sedento.
Ouvem-se vozes, altas, perto...
DEMASIADO PERTO!!!!

Quando viu através da cabeça já decepada a estaca atravessar o seu peito, percebeu finalmente que aquilo que as pessoas complexas há muito esqueceram, não foi esquecido pelas simples. E que há muito, muito tempo, já havia laranjais, de tom Vermelho e Negro à luz metálica do luar.


Autoria: Paulo Lima

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